segunda-feira, 11 de junho de 2007

Herbert, Euclides e Nina

Depoimento do acadêmico Alberto da Costa e Silva Gravado em 03/11/2003.

Quem primeiro me fez ler Os sertões com seriedade foi um professor que tive no liceu, o grande lingüista Herbert Parentes Fortes.
Os seus quase cinqüenta anos e as desilusões políticas não lhe abrandaram, em nenhum momento, o entusiasmo. Era um exaltado, como mostravam os seus olhos. E derramava-se em paixão, ao falar de Camões, de Gil Vicente, do Padre Antônio Vieira e, sobretudo, de Euclides da Cunha.
- Comece pela primeira linha - disse-me. Pois o livro parte da terra para o homem e do homem para as suas desventuras. E esqueça o que na obra se quer ciência. Fique com a poesia. Isto é, com a verdade do instante. Ao contrário das intuições da poesia, que valem para sempre, dizia-me Herbert Parentes Fortes, a ciência envelhece. Envelheceu em Euclides da Cunha, como envelheceu e prejudicou Nina Rodrigues. Pois ambos seguiram as doutrinas do racismo europeu. E, por sinal, perguntou-me ele, você já leu Os africanos no Brasil? Não pode deixar de fazê-lo.
Durante alguns meses, convivi com Os Sertões. E com À margem da História e com Contrastes e confrontos. Contagiei-me de revolta e piedade diante da ignomínia de Canudos. Mas, se Euclides me seduziu pela originalidade do estilo, o que nele me assombrou foi o como trazia para a página escrita, em uma dúzia de frases (ou menos que isto), a essência de um rosto e de um corpo em movimento. O próprio cinema não seria capaz de apresentar com tamanho realismo - ou, mais que realismo, verdade - a cena da chegada a Assunção do Paraguai de Artigas; ou a da recuperação do orgulho de ser homem, e um homem em guerra, daquele seguidor negro de Antônio Conselheiro, a caminho da degola; ou, ainda, a do menino de nove anos a desmontar e montar a carabina. Tinha dúvidas - e continuo a tê-las - de que se pudesse, num filme, manter a tensão nervosa com que Euclides nos punha entre os soldados que iam conquistando, casa a casa e morto a morto, o arraial de Canudos. Talvez Goya - o Goya, que eu então só conhecia em reproduções dos "Fuzilamentos de 3 de Maio" e de algumas gravuras - talvez Goya lograsse a contundência daquele parágrafo de poucas linhas, em que o garoto franzino, com um quepe enterrado até os ombros, levanta de súbito a cabeça, para olhar os que dele riam, e mostra o buraco da boca levada por um tiro.
Eu discordava de Euclides, e ainda discordo, quando este chamava retardatários aos habitantes do sertão profundo. Para mim - e tinha aqui o cinema ou, para ser mais preciso, o filme de mocinho, o western, como o meu padrão, para mim eram eles os nossos pioneiros, pioneiros muito mais antigos do que os norte-americanos, pioneiros que tinham ficado, desde o século XVIII, isolados nas lonjuras das lonjuras, sem diligências ou trens de ferro, sem cabarés, telégrafo e comércio pelo correio, isolados e esquecidos por todos nós, que não tivemos a coragem de segui-los.
Havia quem dissesse ser necessário tirar dois de cada três de seus adjetivos, para fazer de Euclides um escritor perfeito. Eu discordava dessa opinião, e ainda discordo. Os adjetivos em Euclides, como em Vieira, fazem parte da orquestração da prosa. Não escrevia ele para violão, como Antônio de Alcântara Machado, nem para piano, como Ciro dos Anjos, nem tampouco para o quarteto de cordas, como Machado de Assis. Os sertões combinavam mais - isto pensei muito depois - com as sinfonias de seu contemporâneo Gustav Mahler.
Para melhor compreender Euclides, muito me vali dos trabalhos de Afrânio Peixoto (especialmente os textos que figuram em Poeira da estrada) e de Francisco Venancio Filho, fidelíssimo em sua admiração. Os estudos de Afrânio eram meus velhos conhecidos; para os de Venancio Filho, chamou-me a atenção Herbert Parentes Fortes. Bem como para o paradoxo de nascerem da infâmia grandes obras de arte.
- Até nisto, bradava Herbert Parente Fortes, Os sertões repetem a Ilíada.

sábado, 9 de junho de 2007

Herbert Parentes Fortes: um inquieto

Fernando Rodrigues Batista


"Foi Herbert acima de tudo um inquieto. Possuía uma inteligência luminosa, pronta, ardente, original. Não seguia caminhos já trilhados. (...) foi assim, Herbert Fortes, um modelo vivo de apostolado religioso e intelectual. Seu catolicismo era militante e ardente, animando toda sua vida doméstica, social e cultural. Jamais colheu os louros da vitória. Jamais conheceu a facilidade da vida. Jamais privou de perto com esses países por onde viajava a sua imaginação e onde ia abeberar-se a sua vasta e um tanto caótica efervescência cultural". Com estas palavras exprimia Alceu Amoroso Lima a significação que, no mundo da cultura nacional, tem Herbert Parentes Fortes, nosso homenageado.
O primeiro contato que tive com a obra de Herbert foi através de um livro seu editado por Gumercindo Rocha Dórea denominado "Filosofia da Linguagem". O livro data de 1956, e traz a nota explicativa de seu editor: "Foi no dia em que, inesperadamente, faleceu Herbert Parentes Fortes, - são passados apenas três anos - que fizemos um juramento: o de não deixar perecer a obra daquele homem, mestre, amigo e companheiro".
Foi um incansável estudioso da filologia portuguesa a que se dedicou desde tenra idade com entusiasmo sempre renovado. Por ser tão original, não logrou êxito nos concursos feitos no tradicional colégio Dom Pedro II, todavia, conquistou louvores e admiradores entusiastas.
Sua vida – no-lo diz Alceu – foi assim um drama permanente, uma agitação contínua, que ele enfrentava com uma extraordinária fortaleza de alma, assente numa fé inquebrantável. "Viveu sempre apressado, lutando contra a miséria, nesse drama contínuo de professor pobre, admirável professor sem dúvida, que dava a cada aula um calor de apostolado e que fazia discípulos entusiastas de toda uma geração baiana e quantos jovens cariocas".
Um exemplo desse drama permanente de sua vida, é que ainda no fragor de sua juventude, onde no jornal Era Nova (jornal católico da Bahia), dava todo seu fervor apostólico, em decorrência de ser acometido por uma gangrena no braço direito teve posteriormente de amputá-lo. No entanto, ao invés da irá, da desolação, rogou a Deus, que antes de tal infortúnio, lhe fosse concedido a graça de escrever um poema a Nossa Senhora, "como suprema e trágica homenagem à Virgem Mãe de Deus, daquele membro nobre que ia morre na arena do combate contra a ameaça de gangrena! Foi um gesto de autêntico gladiador cristão, que marcou e simbolizou, para toda a eternidade, essa alma generosa, ardente, pura, que iria ser como um meteoro no céu literário".
A vida, o apostolado, o intelectual, o "mártir do professorado", enfim, o homem, será homenageado neste espaço, o que o fazemos com total reverência, porquanto o exemplo de sua vida nos impele a cada dia buscarmos ser pessoas melhores.